quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Mundo de fantasia

Eu não sei bem quando escutei isso pela primeira vez "Você vive no mundo da fantasia!", talvez tenha sido meu pai proferindo palavras voraces depois de eu haver feito algo que ele classificara como merda. O fato é que há mais ou menos um mês tenho ouvido isso toda terça-feira nas sessões de terapia.

— Você vive no mundo da fantasia.

Podendo haver alterações nesta sentença trocando o "da" por "de", "no" por "num" ou "o".

— Você vive o mundo da fantasia.

— Você vive num mundo de fantasia.

Eu fico me perguntando se eu perguntei a estas pessoas onde vivo. Mais fácil haver perguntado uma vez ou outra para aonde vou. Eu sei onde eu vivo, e não tem nada de fantasioso. Desculpa, eu não enxergo o mundo sob lentes cor-de-rosa. O que eu vejo me dói demais, de fato dói em mim. Fosse para escolher uma cor eu não sei qual seria, mas com certeza não seria cor-de-rosa, muito menos sépia. 

Uma vez durante a graduação encontrei meu orientador conversando com um professor que admiro muito, até hoje, embora ele tenha aspecto de gente maluca mesmo. Ele olhou pra mim, e ao me ouvir falando em espanhol com meu orientador colombiano proferiu: você é de espanhol? ah, veja como a tarde está sépia. Fiquei calada fitando os dois, imaginando se estavam chapados ou se havia alguma droga no copo de café de 50 centavos que eles estavam segurando. Meu orientador sorriu, como se os dentes me indicassem o caminho da saída, embora estivéssemos em um pátio livre, aberto, enxerguei o caminho da saída e deixei os dois com a impressão que um via o mundo em sépia, e o outro nas cores LGBTQ e havia me enxergado como uma suave amenaza.

Quando pequena minha mãe não me comprara nada cor-de-rosa. Nada. Eu chorava, porque todas as minhas amigas na escola, e na avenida Jules Rimet em Rio Doce, todas, sem exceção tinham peças rosas de roupa, calcinha, short, blusa, diadema, caneta, estojo, bolsa, enquanto eu não tinha nada. Eu tinha uma camisa que era verde limão cheguei, essas cores vibrantes que chamam de neon, ela tinha um pedaço rosa-choque e eu adorava usar essa camiseta só porque tinha esse pedaço cor-de-rosa-choque. 

Eu tampouco podia assistir o programa da Xuxa, assistia escondido sempre que podia. Não gostava, nunca gostei. Mas só porque me proibiam eu queria ver. Hoje em dia eu tenho caneta rosa, blusa rosa que fica encostada no guarda-roupas - talvez por ela ser de exercício e eu ser extremamente sedentária - e uma mochila cor de rosa cheguei que eu uso todos os dias. Parece que o trauma foi superado com semi independência financeira onde eu possa comprar o que eu quiser, da cor que eu bem queira.

Acho engraçado associar uma cor à "fantasia", delírios mentais. Eu talvez, se quisesse, poderia associar cor a sentimento, mas nunca o fiz. Qual seria a cor da alegria pra vocês? Não sei porque fiz essa pergunta. Na verdade quando quero perguntar algo sempre tem relação ao amor. Na verdade, eu queria ter escrito primeiro "Qual a cor do amor para vocês?". É por isso que minha psicóloga diz que eu vivo no mundo da fantasia. O que é viver no mundo da fantasia? Olha, eu não tenho óculos com lentes coloridas para ver o mundo em sépia, como o estimado professor de literatura, não tenho óculos cor-de-rosa para ver o mundo desde a nave da Xuxa, tampouco um amarelo para ver as coisas meio Dua Lipa. Eu creio enxergar o mundo como ele é, desde a perspectiva e experiência de vida que tive e pretendo ter. Sem filtro eu já erro, imagina pintando uma escada imaginária até um céu de sociedade perfeita. Que loucura.

Eu não concordo com muitas coisas que me são ditas. Acho que meu primeiro impulso é discordar, antes mesmo de ouvir. Não é que eu não ouça, eu não dou tempo para assimilar. Esse mundo é tão fodido, e por muitas vezes fui sempre cortada no que queria dizer, expor, me expressar que qualquer que seja a pessoa quando fala algo eu já penso "não concordo", e eu sei que estou errada. Porque tudo que é arbitrário é ruim. Tenho essa consciência.

Às vezes tenho vontade de levar uma amiga para conversar com minha psicóloga, porque quando escuto algumas coisas a vontade que tenho é de bocejar deliberadamente. Embora ali eu jogue as pedras no chão ao entrar, eu escuto coisas absurdas. Eu acho que ela não sabe escutar. O mais interessante é que na teoria do espelho tudo faz sentido. Estou aqui falando impressões que tive das minhas últimas terapias e isso quer dizer muito de mim. Bastante. 

Mas acreditem, eu não vejo o mundo cor-de-rosa. Ele perdeu a cor para mim quando meu primeiro cachorro morreu, Tek. Quando vi minha avó receber uma entidade em casa e dizer que tal coisa, se a gente fizesse, meu avô melhoraria e se curaria do câncer, me senti enganada e com raiva da minha avó  por muitos anos. O mundo perdeu a cor quando ele morreu. Hoje almoçando, cansei de ver Netflix e cliquei no botão exit do controle da tv, que pulou automaticamente para o Globo News, estava passando uma reportagem sobre feminicídio, onde havia uma adolescente ao lado da mãe falando que "a gente nunca está preparado para perder alguém". Meu pai virou no sofá e sentou. Eu fiquei bem séria fitando ele, que não me enxergava. É impossível ver o mundo cor-de-rosa quando a gente tem a consciência de que se pode perder alguém. Mês passado perdi o amor da minha vida, ou achei que havia perdido. Também quase perdi nosso cachorro, Leônidas, e passei maus bocados, apelei pro divino e fiz promessas que insistem em me dizer que não conseguirei cumprir. Hoje fiquei mal pensando que qualquer dia posso perder meu pai. Alguém pode dizer praquela psicóloga que eu não vejo o mundo cor-de-rosa? Ou melhor, digo eu. Que posso ser vista como frágil, como alguém que gostaria de subir na nave da Xuxa ou simplesmente ter a liberdade de assistir essa merda de programa.

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